Talvez você dê a ela o nome Maura. Mas ela não se chama Maura, ela não tem nome. Essa mulher – que também não é mulher, nem homem, nem nada – é uma jainista. Uma mulher que varre o chão incessantemente para não pisar em nenhum inseto. Imagine, um inseto... uma mulher que evita débitos com o grande Senhor do Universo. Essa mulher – que também não é mulher, nem homem, nem nada – é uma niilista. Não acredita em karma. Deus está definitivamente morto e foi ela quem matou com um punhal vermelho-vivo, sangue nos olhos, veneno na carne. Sim, a Maura que não é Maura. É Riva. Não, é Sucumélia. Não, é Belarmino. É a variação mais feia e confusa e putrefata do corpo da Terra. Quem é esse? Quem é? Deus existe. Sim. A Maura, a Riva, a Sucumélia, o Belarmino sabem que existe e que Ele está lá no alto com seus longos e infinitos úteros. A Riva acha que Deus tem três úteros, a Maura discorda, diz que tem nove. O Belarmino não sabe e, por isso, enlouqueceu. Enlouqueceu por pensar nos órgãos de um ser imaterial. Seus questionamentos eram muito bons, mas, em seu país, pensar era uma afronta. Quem muito se excede na vida, tem a alma murcha. Mas nenhum desses seres inventados existe, nem na invenção. O que é psicodelia? O autor está sob efeito de fungos, ou é a poeira do móvel ao lado, ou o cigarro que fuma todos os dias. Traga no pensamento, pois não tem dinheiro para comprar o palito de câncer. Mas, imagine, sete reais por mais de 4.700 substâncias tóxicas, baratíssimo! A morte é muito acessível. Mais acessível do que a vida. Ninguém quer nascer e, quem quer se arrepende. Todo povo é o escolhido de si mesmo. Esse texto não dá para entender. Vou parar de escrevê-lo. Não, eu, Maura Riva Sucumélia Belarmino não posso parar. Do contrário, morro. As únicas coisas que me mantêm vivo é a certeza da morte e a literatura, que é um veneno se usada em excesso. Virei do avesso da lua e existi. Sou uma mística. Não, sou um cético. Sou um morto num corpo de vivo. Sou um louco que finge sanidade. Mato insetos, amo a Deus. Devoção e egoísmo. Selo de Pashupati. Eu tenho o Diabo no corpo, tenho uma moeda na orelha. Um professor está gritando no meu tímpano um som de mar. Agora ele fechou as coanas e está coaxando. Mas o que é isso? Poesia. Não, é café. Que café, Maura? É chá. Chá, Sucumélia? Onde tem chá, Lorena? LORENA? Quem é essa? Ninguém sabe. Nem a própria Lorena, nem o próprio autor.
Fui na esquina e pedi um chá. Vi uma torre, ao longe, feita de pedra. Vi um pássaro segurando oito paus no bico. Pensei que fosse para fazer um ninho. Mas os oito paus se multiplicaram no ar e caíram em cima de mim. É poesia. É sorte. É francês. Não o gentílico, mas a língua. Francês é um idioma muito chique, as pessoas que falam francês têm, naturalmente, uma aura libriana. Libra é o signo mais bonito. Maura tem uma quedinha pelos librianos. Belarmino, vem cá. Você reza para ganhar dinheiro? Eu não, onde já se viu rezar? Concentrei-me na natureza. Meu corpo era setenta por cento folha. Os outros trinta eram oceanos. Lúgubre e Plácido. Um encerramento bruto e despolido acontecia. Mancha cinza, vaga confusa e misteriosa. Respeite a minha pontuação. Quem escreve este texto é o surrealismo, não o ente autor. Respeite a minha pontuação e a minha liberdade. Respeite e reverencie Maura, Riva, Sucumélia, Belarmino! Poesia se entende? Só na intimidade, na cama, no quarto fechado, no canto mau da sala, no corpo, no sexo. Sucumélia foi ao mercadão para comprar 1 quilo de coração de boi. Não sei para que serve o ponto e vírgula; vou usar sem saber mesmo. Filosofia e neurociência. Biologia e modinhas imperiais. Um importante meio de contemplação e intermédio da função espiritual. O que é um hormônio? Gente inventada tem hormônio? Tem. Não tem, Riva. Tem sim, Maura. Não tem, Lorena. QUEM É LORENA? A menina que subiu numa escada de ossos. Que nojo. Ossos de quem? Do Milton da Costa. Da vizinha louca. Do bibliotecário sedento. Do farmacêutico que lê Gullar no período de serviço. Ele está lendo A Luta Corporal e não está entendendo nada. Sargasso marinho. Ela era muito feliz e nasceu em Itabira. Ela era poeta e morreu de fome. Morreu de fome, mas morreu feliz. Viveu na União Soviética e era muito vazio, muito triste. Ela disse. Eu não vivi lá, mas meu pedaço Maura, jainista e niilista, viveu. E disse que era ruim. Meu pedaço Riva gostou.
Dar tempo ao tempo, morrer uma morte lenta, vibrar no espaço dos amores e das palmas, comer coisas ensopadas em frituras, ler e não sentir as palavras entrando nas zonas cerebrais, ler e ter nojo do que lê. Pelos, axilas, turvas virilhas. O corpo te enoja? Olha a ti mesmo. Teu corpo te enoja? Belarmino não gosta das obscenidades, não gosta das partes mais íntimas, não gosta de olhar o próprio corpo, não gosta de olhar o corpo do outro, não suporta nem entranhas, nem penugens. Sucumélia aprecia as noites de volúpia e prazer, se liberta ao ver um homem com pelos, com toques, com cheiros, com irregularidades. Maura gosta, mas não demonstra. Perceber o próprio invólucro, notar a si mesmo. Correr o infinito das inconstâncias corporais, montar em cavalos e perceber que saiu do cativeiro. Cortar o sangue mau que percorre o bem, ceder ao amor bom que te cerca e notar que o enjoo logo passa. Perceber que vale a pena sacrificar um pouco da individualidade para sentir a adrenalina da paixão. Há um bicho em minha sala, um bicho vermelho e preto, com chifres retorcidos que pergunta perguntas inquietas. Sou eu mesmo interrogando o espelho riscado. Escrever é como lançar um feitiço. Enfeiticei-te? Diga-me e eu devorarei a mim mesmo. Escrevo sempre acerca de mim mesmo e muito rasamente acerca das coisas do mundo, pois delas sou muito ingênuo. Eu não amo o terror, o grotesco, o rude, a morte, mas todos esses fazem parte da naturalidade da vida e, por isso, tenho-os em mim e as amo.
Leia agora meu desabafo:
Tenho me perdido muito na arte e na literatura. Desde que estudei o surrealismo e o dadaísmo tenho estado absorto na loucura. É um perigo muito grande estudar esses movimentos, porque eles ligeiramente nos afundam junto deles. Eu sinto um pouco de saudade do Samuel sem mistura de tradições, só com a tranquilidade intranquila de ler Clarice Lispector, mas, quando li Hilda Hilst fiquei louco. Hilda não gosta de mim e me tombou com sua força linda e maligna. Logo cairei morto. Sei que meus espasmos e formigamentos não são provenientes das coisas do externo. O externo modifica a carne, a pedra, a terra, mas não pode penetrar os jarros de barro da complexidade inextricável do ser-dentro, do sedento corpo da alma. Queria voltar à normalidade, mas li em algum lugar que nunca se deixa de ser o que já é.
Olhai o cálice, minha filha.
Samuel Mota é estudante e escritor, amante do teatro e da música. Fortemente influenciado pelos escritos de Clarice e Hilst, escreve crônicas, poemas e contos como forma de se libertar, se conhecer e ampliar as possibilidades do próprio eu.
🦆
Apoie o jornalismo independente colaborando com doações mensais de a partir de R$5 no nosso financiamento coletivo do Catarse: http://catarse.me/jornaldepatos. Considere também doar qualquer quantia pelo PIX com a chave jornaldepatoscontato@gmail.com.
0 Comentários
Obrigado por comentar!