Imagem: Acervo Instituto Moreira Salles |
“[...] tem como funções definir o eixo do embrião, serve de base
para a formação do esqueleto axial, e é o futuro local dos corpos das
vértebras.”
(Fatima Brito)
Dormindo estava e escutava o rufar de tambores
da fanfarra na rua. Estava impregnado nesta atmosfera. Os batuques vibravam em sua vida e em suas veias.
Sonhava e ressonava. Às vezes, acordava de leve,
mas voltava a dormir, sendo balançado pela marola das
caixas.
Sonhava com amor.
Acordou.
Gil, de repente, nasceu de novo.
Chamava-se, em verdade, Gilmar. Mas um tonto
do bar resolveu aplicá-lo Gil. E assim ficou. Não quis
retrucar, nem debater, nem discutir, nem vaiar. O maço
de cigarros meio amassado no chão, ao lado do sofá,
estava um tanto úmido. Presta isso? Pegou um e acendeu
e foi para a varanda fumar, sentado, assistindo à
fanfarra. A cada tragada, morria um pouco, mas isto lhe
dava prazer e era isto que o mantinha vivo no meio do
caos de Ouro Preto. Que caos? Para ele, havia.
Levantou. Bebeu um copo d’água.
Gritou para si mesmo “SE ESTENDAM OS
CIRCOS!”. Não sabia porque tinha feito isso. Mas soou
em si, a frase. Ressoou em si, a frase. Retumbou.
Repercutiu. Foi para o quarto e pegou um caderno, um
lápis e um livro da Ana Cristina César. Que só depois de
morta, viveu. Acendeu mais um cigarro, lendo e
anotando o que gostava. O que não gostava, ignorava.
Porque o que importava, era que estivesse lendo sua
musa, fumando e ouvindo a fanfarra. Ouviu uma voz.
Olhou para o lado e viu um vulto. Era o Pirandello.
Adormeceu. O livro infestado das cinzas azuis do cigarro
de cinco reais.
A noite passou. Fria e turbulenta. O dia chegou.
Frio e turbulento.
Enlouqueceu. Escutava a voz de Elis Regina e via
o rosto de Pirandello. Dormiu de novo e, ao acordar,
correu para o banheiro e vomitou. Era o vômito das
palavras ensandecidas e periclitantes lutando para
saírem, esbravejantes e piedosas, do peito. Não tinha com
quem conversar direito. Não confiava na mãe. Não
confiava nos amigos do trabalho, do bairro, do boteco.
Confiava só na voz de Elis Regina e no rosto do
Pirandello, que, às vezes, não parecia real, mas era. Para
ele, era.
Não era um monge que pertencia a uma ordem.
Era um mentiroso, um fumante que via estrelas e
borboletas e mariposas nos ônibus. Gostava mesmo era
de um bom rum, ao som de alguma música. O silêncio
era um incômodo. Tinha um humor fácil. Conquistá-lo
era fácil, mas mantê-lo era difícil. Volátil como uma
nuvem que chora. E então, em um de seus dias de
chuva, acordou, fumou um ou dois cigarros de cinco
reais — os pulmões já falhando — sentou-se à
datilógrafa, escreveu seu nome — Gilmar Fernando de
Souza — e pulou da sacada, atirando-se contra a
fanfarra.
Samuel Mota é estudante e escritor, amante do teatro e da música. Fortemente influenciado pelos escritos de Clarice e Hilst, escreve crônicas, poemas e contos como forma de se libertar, se conhecer e ampliar as possibilidades do próprio eu.
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5 Comentários
parabéns Samuel, belo texto 👏
ResponderExcluirUma fração de um texto perfeito que nos leva a querer um início e fim para conhecer Gil.
ResponderExcluirQue texto intrigante!! Parabéns, Samuel, pelo domínio da arte, da sensibilidade e da palavra. Sua descrição nos conduz à percepção angustiante do personagem!
ResponderExcluirExcelente Samuel. Consegui ver um filme enquanto lia o texto e sentir até algumas sensações do personagem. Muito imersivo. Parabéns 👏👏👏
ResponderExcluirEste é o primeiro de muitos, anelo muita atividade e realização
ResponderExcluirObrigado por comentar!