Anônimos: entre a vida e a bebida, histórias interrompidas pelo álcool - Parte 6

Por Gustavo Rubim*


LORENA

JÁ ESTAVA TRÊS MESES ALI, semi adaptada, conversa mais com Ana Luisa, Luisa com “S”, como frisou. Luisa é enfermeira, anda com o mesmo jaleco de bordas floridas de Flaviana, possui idade próxima de Lorena, por isso a afinidade. Após o flash do encontro, minutos depois nos vemos de vez, agora sim, frente a frente e desacelerados. Me falou das atividades, disse a ela que queria acompanhar, era a primeira vez que entrava na “biblioteca”, uma sala com figuras nas paredes, feitas pelos pacientes, uma mesa sem quinas e cadeiras em volta. Havia um pequeno quartinho no fundo, onde guardam papéis importantes. Os pacientes chegam um a um, naquele ritmo lento. Lorena aguarda, calma, na sala. Aproveito o instante para fazer mais perguntas.

Lorena me trata de forma amigável, assim como lida com todos. Agora estão a postos na mesa, distribui folhas, dessa vez não participo, apenas observo a mão leve da moça escorrer o papel pela mesa em direção aos pacientes. No papel está uma gravura semelhante a um rosário, o objetivo é colorir cada bolinha, da forma que preferir, em uma caixa estão os lápis para colorir, de todos os tamanhos e variedades de cores.

As folhas não foram suficientes, João Batista teve de desenhar seu próprio rosário, talvez por isso não concluiu a atividade. Seu Cleto optou por duas cores apenas, azul e verde, as quais intercalou entre uma bolinha e outra, corria a ponta do lápis com cuidado para não escapar a borda da gravura. Por que aquelas cores? O azul talvez pela paixão pelo Cruzeiro, time do coração, seu Cleto sempre está com uma camisa do clube, além do boné que possui vários escudos, é fácil ganhar sua amizade, basta comentar sobre futebol. Os resultados dos jogos chegam por meio de Nílson, guarda-noturno e mototaxista durante o dia, leva alguns documentos até a recepção.

Não sem antes ser interrompido.

– Fortaleza ganhou ontem? – grita Ceará, que é e tem cara de cearense, baixinho, sorriso simpático e torcedor do Fortaleza. – Ganhou, 2 a 0 no CSA.

E assim passa todos os resultados da rodada.

A cor verde, não consegui uma explicação aceitável, aderi a probabilidade, pois havia mais lápis verdes na caixa.

Everson, agora com os ferimentos cicatrizados, ainda era calado e tinha aquele aspecto assustador, mas coloria paciente sem repetir a cor da última bolinha. Nem parecia o mesmo do primeiro dia. O rosto possuía um branco menos pálido e os olhos algum brilho de esperança. Seu Israel ao lado, parecia a quilômetros dali, coloriu tudo da mesma cor, tudo azul, até quando a ponta do lápis quebrou, substituiu por um da mesma cor e seguiu a viagem, como um carro que para a beira da BR para abastecer.

Certamente devia haver alguma explicação, as cores escolhidas, a forma de segurar o lápis, a música suave e sonolenta que Lorena escolhera, tudo estava ligado ao Japamala, um cordão de contas, utilizado na meditação, feito de sementes, que na falta era impresso em desenho.

Israel seguia com o lápis, azul, azul, azul…


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EM QUEM PENSAR?

– Pense em uma pessoa e diga:
Sinto muito;
Te amo;
Me perdoa.

ABRIU A PORTA ABRUPTAMENTE. Renato, exaltado. Estava da mesma forma quando o encontrei na recepção no início da semana.

– Esses policiais não deixam a gente em paz – reclama agitado na entrada.
– O que houve Renato? – pergunta Gislei, sempre atenciosa.

Foi quem me recebeu quando cheguei ao Caps, antes de falar com qualquer outra pessoa, lá estava ela no cantinho do balcão, apoiada sobre o braço direito e o princípio de um sorriso. O filho faz Direito, foi bem no exame nacional de educação, sempre foi inteligente e faz mais alguns elogios ao garoto, que tanto a orgulha. Gislei realmente se importa com quem está ali, como eu, perdido naquela sala.

– Roubei lá do lado de casa e estão atrás de mim.

Renato é dependente cruzado (que usa múltiplas drogas) e um idiota valentão, de nada tem a ver com os demais pacientes. É agressivo e não tem intenção de melhorar. Ainda é jovem, vai ver seja isso, tem muito o que estragar da vida, antes de perdê-la.

– Cadê minha blusa de frio, se não aparecer o negócio vai ficar sério – antes de sair leu em voz alta, pausadamente e irônico as frases sobre a mesa, “sinto muito, te amo, me perdoa”.

Nesse instante procurava alguém para pensar. Todos o olharam em silêncio e retomaram a busca, como eu. Não encontrava, por fim pensei em mamãe.

Será que seu Cleto pensava no filho?

– Posso escrever o nome da pessoa? – perguntou Lázaro.

Um senhor branco, de cabelos grisalhos e bem vestido.

Possui um vocabulário vasto e educado, o qual pronuncia com um extenso “R” nos fins das palavras, comumente encontrado na região que morava, Lagoa Formosa-MG, cidade mais próxima de Patos de Minas, cerca de 20 quilômetros dali.

Mas o que aquele homem de boa procedência fazia ali e qual nome deseja escrever?

Para primeira pergunta não tenho resposta, bebia tanto que não conseguia trabalhar, era fraco e trêmulo, o que ficava ainda mais nítido ao retirar o celular do bolso. “Agora estou com esse velhinho”, roubaram o último, mais modernos e cheio de funções que Lázaro aprendia a usar. “Aqui tem mais bandido que doente”.

O fluxo de pessoas é enorme, principalmente nos horários das refeições, são poucos os que ficam realmente e têm intenção de melhorar, “o Caps é um albergue para esse pessoal” me confidenciou João Batista, que creio que não sofra de alcoolismo, nem de qualquer outra coisa, sofre de solidão e ali no meio deles encontra aconchego, companhia, algo para ocupar a cabeça. Passou longe do fundo do poço, compreensão que teve ao ouvir as histórias de quem passa por ali nas segundas-feiras, dia de consulta e de maior movimento.

[CONTINUA]

Instagram: @gustavo_rubim
eugustavorubim@gmail.com

FICHA CATALOGRÁFICA

RUBIM, Gustavo Pereira. Anônimos; entre a vida e a bebida, histórias interrompidas pelo álcool/ Gustavo Rubim – Patos de Minas: EDITORA, 2019, 116 p.

Capa: Gustavo Oliveira
Diagramação: Gustavo Oliveira
Fotografia: Gustavo Rubim
Revisão: Profª Ms. Regina Macedo Boaventura/ Profª Sintia A. Pereira da Silva
Orientadora: Profª Ms. Regina Macedo Boaventura

1. Livro. 2. Livro-reportagem. 3. Alcoolismo. Jornalismo Especializado I - Centro Universitário de Patos de Minas. Fundação Educacional de Patos de Minas, Patos de Minas, 2019.


* Gustavo Rubim, 22 anos, brasileiro, jornalista pelo Centro Universitário de Patos de Minas, Unipam - Brasil. Mestrando em Integração Latino-americana pela Universidade Nacional de La Plata, UNLP - Argentina. Vive em La Plata - Argentina.

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