Por Neto Moreira
Faltava-lhe um cado de calor, de mistério, faltava-lhe um amor e ele no adultério de navegar os anos em águas rasas. A vida era uma Monalisa que nunca esboçava um sorriso, nunca passava um batom e que nunca havia mudado a postura. Estática em dura matemática de dois e dois sempre serem quatro. Perdido no quarto feito labirinto e a mente, um minotauro.
Tomou as escadas, areias movediças em que precisava firmar alguma precisão nos movimentos. Não mão o cigarro era um adorno do tempo, distração incandescente ao homem que já não calculava o hábito. A viela, o cortiço, o aposentado cego, algumas putas tristes ainda a oferecer seu trabalho e o escárnio dos olhos que não mirava cena naquele quebra-cabeça cotidiano, montado pela mente acostumada a ele.
Passos lânguidos buscavam o bar em que gastava horas em troca de trocados. Nada de novo, nada que brilhasse. Seria a mesma besta manhã novamente, com ébrios disciplinados a tomar a primeira dose antes das dez. Os pobres pedindo copo de água da torneira sem se importar com a sujeira do batom em sua borda. A horda dos presumíveis homens normais demais para merecerem mais que meia dúzia de palavras. Língua seca de esperança de qualquer bonança que lhe surpreendesse olhos e ouvidos, tudo igual, nada faz sentido.
Caminhava sem pressa para o açoite cotidiano da realidade. E com o vento que trás novidades, sem que lhe alcançasse a vista, pequena gente lhe interrompeu a trilha. Trazia algo nas mãos, junto da fala insistente, da voz infantil latente que lhe custava compreensão. Nada de novo a princípio, o precipício daqueles que o futuro não abençoará.
- Compra-me uma flor, tio.
Levou a mão como sinal de pare, para não ter que negar a ajuda de forma clara. Tentou sair pelo lado. Não foi obstado, mas não deixou de ser questionado pelo olhar mudo que buscou o solo como consolo. Tentou divisar alguma hiena que talvez explorasse aquela menina na triste sina de vender o que ninguém ali precisava. Seria mais fácil negar a súplica, vestir-lhe a túnica dos invisíveis. Mas lhe incomodava o silêncio que não insistiu nas palavras, não deu justificativas, não acusou a fome. E que direito tinha de usar um português correto naquilo que há mais de incorreto no mundo? Uma criança de pés sujos, não de brincar no barro, mas por não ter os sapatos...
O silêncio gritava enquanto percorria a vista no entorno. Buscava alguma explicação para a cabeça atordoada aparentemente sem motivo. Foi surpreendido. Tudo estava parado. Os carros, as pessoas, as aves, a fumaça do cigarro construindo estátuas no ar. Tentava cobrar da razão alguma explicação quando foi interrompido pela voz da menina:
- Acontece de o tempo parar quando preciso.
- Quem é você?! O que está acontecendo?!
- Vendo flores, já esqueci meu nome nas esquinas. O que acontece é o que te digo: o tempo para quando preciso. Ontem mesmo um josé qualquer só não foi atropelado porque o tempo parou para ele subir na calçada. Nem o motorista entendeu. Safou-se por um fio de bigode de gato.
A interrogação já não lhe importava. O buraco do coelho em que caiu, onde quer que estivesse, não fazia conta de profundidade. Talvez habitasse o mundo dos sonhos, semimorto entre o estrado e o telhado. A pergunta já não lhe importava. Enfim algum enigma que lhe esmagasse a rotina.
- Não tenho dinheiro. Mas parece ser uma rosa roubada de qualquer jardim. Você não pagou por ela e não a cabe a mim fazê-lo. Nem sei se a quero, embora reconheça o esmero de seu desenho.
- Guarda alguma verdade seu sussurro. Mas, veja, fique com ela. O tempo parou aqui, agora, porque há de ser sua em boa hora. Não se recusa bonança, ainda mais vestida de mistério.
Levou a mão para tê-la entre os dedos. Momento. Ao tocar-lhe o caule tudo voltou a andar no compasso de seus passos habituais. A menina sorrindo, a buzina, a fumaça indo devagar, o vendedor de balas pelas salas das ruas, tudo dançava em um caleidoscópio na mente como se realidade recobrasse a razão. Ter furado o indicador ao pegar a flor trouxe alguma sobriedade.
- Ei, o machucado, o sangue, isso tem algum sentido?
- Só saber-se vivo. Criança leva o dedo à boca e chupa a pequena mina até parar. Lembra?
Deu as costas. Não pensou em nada. Retomou as pegadas marcadas pelo cotidiano. Nas mãos, mais que uma flor, todo um buquê de Porquês que ia despetalando pelo caminho. O bar com seus quarenta anos descuidados, os ruidosos pedidos, os bêbados amigos sem se importar com a bruta segunda, a pimenta no frasco, os vendedores no encalço dos transeuntes...
Beijava a desatenção ao estudar a flor para saber se mágica ou devaneio, quando, pelo vento veio, uma mulher que não se sentou e pediu um café. Olhava o rapaz pelos seus óculos redondos como binóculos a aproximar a cena. Sorriu porque ele tinha uma rosa nas mãos em meio aquele ambiente manifestamente hostil à uma flor. Ele sorriu de volta, não explicou por que não tinha meios para tanto.
- Eu também tenho uma rosa aqui comigo – e mostrou a tatuagem no antebraço direito.
- Essa talvez seja também sua, porque minha foi só de passagem – não pensou para falar, mas gostou da sonoridade do que brotou feito planta do chão: com coragem.
Conversaram a ponto de esfriar o café. Saiu levando a rosa e ele, entre o balcão e o desejo de prosa, ávido, perguntou seu nome.
- Amanhã te conto!
A mesma manhã, o mesmo sol e tudo, diferente, diferente, diferente... coisa de quem sente. Sentir faz sentido. Ainda mais para os esquecidos de que os sonhos acontecem na medida do impossível.
Neto Moreira é um poeta fajutinho, contista e compositor de rocks rurais.
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5 Comentários
Amei!!!! 👏👏👏👏
ResponderExcluirObrigado, Nádia!
ExcluirNeto expande a insensatez do explicável na sensatez do inexplicável. Bravo, Neto!
ResponderExcluirObrigado pela poética descrição, amigo. Sigamos no Mar das Letras, navegando em águas profundas!
ExcluirShow de bola. Esse menino vai longe. Palavras que trazem fragrância à nossa mente. Lança um livro, Neto Moreira. Parabéns!!!
ResponderExcluirObrigado por comentar!