Acordou no meio da noite. Estava fresco, seus olhos se abriram quando se despediram do sonho que era viver novamente o toque da pele fresca. Encarou o teto, a luz baixa era afastada do escuro somente pela claridade do luar. Sentiu a ponta dos pés roçarem o lençol macio de algodão. Sentiu alguma coisa em seu coração. Levantou-se, colocando primeiro a ponta dos dedos, o choque do chão frio, logo depois o peito do pé, era estranho saber que estava acordado. Se debruçou sobre a janela, ergueu o vidro e inspirou o ar ameno que o fim do outono trazia. O céu estava anuviado, coberto de pequenas rachaduras sem estrelas. Seus dedos abraçavam a madeira antiga do beiral, podia sentir com todas as partes a aspereza do material. Era difícil respirar. Olhava fixamente para a linha do horizonte, naquele momento em que tudo era infinitamente plano e plausível, no segundo onde o mundo poderia ter algum sentido. Onde havia vida, um lugar em que ela não fosse ínfima e passageira. Olhou para os prédios, as luzes acesas da cidade, imaginou-se distante, num campo repleto de árvores e silêncio. Pensava, em cada um daqueles carros transeuntes, em cada uma daquelas casas pela rua afora, existia uma vida. Em meio a sua insônia. Alisou a madeira, passou pelas imperfeições que o tempo lhe causaram, caminhos tortos, buracos, lembranças... Seus lábios, finos, não se moviam. Seus olhos, castanhos, refletiam a alma. Umedeciam-se em verdades. Tirou o celular do bolso para escutar alguma melodia, algo que fosse reconfortar o seu coração. Era difícil esconder, era bom saber que quando ninguém via podia ser. O rosto sem expressão inspirou profundamente o ar frio e prendeu em seu pulmão. Como se pudesse salvar essa canção por tempo suficiente para que nunca se esquecesse. Seus ombros esmorecerem, apoiou-se com os braços cruzados no beiral e recostou a cabeça em cima do cotovelo esquerdo. Era doce. Ainda que amargo. O peso de seu coração, compassado pela sincronia da melodia do piano de fundo. Era frustrante, ainda que aliviante. Saber que ainda não se perdera em ritos e passagens, em tradições e rotinas que asfixiavam a essência. Porque também era doce, como o seu olhar sob o mundo, era gentil, como o sorriso que escapava pelos olhos marejados. Era sutil, como o toque a pele quente que vivia ao sonhar, ao acariciar os finos fios de cabelo e abraçar o corpo exposto, vulnerável. Lutar, incansavelmente, cansava arduamente. E desmoronar, uma fortaleza erguida com tijolos amarelos, era algo que acontecia vagarosamente. No entanto, ao luar, desistir não era possível, afinal, em algum lugar, de qualquer modo que fosse, encontrava o espaço para ser. Além da gaiola, que canta o pássaro, além do descompasso do bater das asas, além das feridas feitas pelo vento. Ainda era tocar, o rosto afável, e viver em suas memórias o cuidado. Talvez, quem sabe, toda essa diferença fosse fazer algum tipo de presença pelo mundo. Talvez, quem sabe, as palavras sejam mais que desenhos em papeis e toda a loucura fosse assoprada pelo mundo, como folhas flutuando ao cair. E pela leveza o olhar mude. No que seriam olhos marejados, na verdade era o brilho da alma ao finalmente sentir a calma do mundo. Sorriu. Virou-se, deitou-se e adormeceu. Ainda não sabia dizer em qual momento vivia e em qual momento dormia. Mas sabia que sonhava, de olhos abertos e fechados.
Elza Maia é uma amante da escrita e aprecia colocar no papel os sentimentos da vida cotidiana. Futura psicóloga, pretende mesclar as duas paixões em uma.
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